E o que eu tenho a ver com humanas? Conheça o projeto Empurrando Juntas
Na área da computação, temos a ideia de que:
Computação = Engenharia + Matemática
Ouvimos dizer que para entrar em um curso de Engenharia ou Computação, é preciso ser bom em cálculos, matemática e exatas no geral. Mas o que isso acarreta? Qual é, de fato, o perfil das pessoas desenvolvedoras? E qual é o impacto disto na sociedade?
Realizada anualmente, a StackOverflow Survey [1] é uma pesquisa feita com pessoas desenvolvedoras e reúne, dentre outros dados, informações demográficas desses profissionais.
Os dados demográficos de 2022 não são muito diferentes dos anos anteriores, tendo mais da metade dos desenvolvedores com idade entre 18 e 34 anos, 93% identificando-se como homens, 40,75% como pessoas brancas, e 38,13% europeus. Além disso, os Estados Unidos são o país com mais respondentes e 85,96% declararam sua sexualidade como heterossexuais. Apenas 1.5% dos respondentes são pessoas trans.
Este perfil fica em contraponto com a realidade que vivemos, na qual o aumento do uso da tecnologia faz com que ela precise se adaptar a um grupo cada vez mais diverso de pessoas [2]. A tecnologia existe em meio à falsa ideia de universalidade, que vem do pensamento técnico, como se 0s e 1s existissem de forma isolada no mundo. As máquinas e os programas são desenvolvidos por pessoas, e todos nós temos nossas vivências e vieses.
Se os computadores que deveriam 'servir' a todos são desenvolvidos por um grupo homogêneo de pessoas, essas máquinas realmente cumprirão o que é necessário? O resultado comum disto é o desenvolvimento de tecnologias excludentes.
Exemplos de consequências atreladas a esse resultado são as tecnologias sendo utilizadas para fins que não foram inicialmente mapeados para essa plataforma, como o reconhecimento facial, que a princípio defende a ideia de facilitar diversos serviços de comunicação. Porém, é utilizada também para segurança pública, possuindo falhas, como na qualidade das imagens e base de dados com vieses, o que por vezes são fatais para pessoas não brancas [3].
Outro exemplo é a atual discussão que ocorre no Brasil, sobre responsabilidade das redes sociais em relação aos casos de violência nas escolas. De acordo com a Agência Senado, o governo tem sido cobrado e mobiliza-se para incluir legislações que ajudam prevenir casos de violência, combatendo a propagação de conteúdos que incentivam violência e informações falsas [4].
Um estudo da Stanford University encontrou redes de contas operando com compradores e vendedores de imagens de abuso sexual infantil no Instagram, de forma explícita e mesmo sob denúncias, estes perfis são fechados, mas acabam voltando com outras contas.
Isto significa, de forma resumida, que a simples ação de desativar a conta, não é a mais efetiva para auxiliar a sanar este problema. Os algoritmos de recomendação facilitam o acesso a esses conteúdos, por meio do uso de hashtags e contas que já estão a muito tempo na plataforma [4].
Empurrando Juntas
Dito tudo isso, o que uma pessoa desenvolvedora pode fazer para auxiliar a mudar essa realidade? Um exemplo de como é possível fazer conscientemente um projeto com foco em evitar esses problemas exemplificados, é o projeto Empurrando Juntas (EJ), do qual tive o privilégio de participar.
A ferramenta é confeccionada ciente das diferentes opiniões de uma comunidade, que tendem a se isolar de outras declarações que não semelhantes às suas, o que chamaremos de bolhas de opinião. O escopo da plataforma reconhece o perigo desses nichos de se polarizar e radicalizar, onde surge então a proposta de “estourar” as bolhas.
A EJ é uma ferramenta de participação social, que utiliza inteligência artificial para traçar perfis de usuários, de forma que os coloque para expor e ouvir opiniões. Um exemplo de perfis que podem ser traçados:
- (A) Usuários que falam biscoito;
- (B) Usuários que falam bolacha;
- (C) Usuários que não se importam e usam os dois.
Os usuários C são chamados de ponte, que são pessoas que conseguem se aproximar tanto dos usuários A e B para conversar, pois os usuários A e B não conversam entre si. Com essa aproximação, evita-se que uma discussão crie dois pólos que não se conversam e só conversam com opiniões similares, como é de praxe em redes sociais.
Outro exemplo, retirado da página inicial da plataforma e ilustrado na Imagem 1, existem duas opiniões que à primeira vista seriam completamente opostas - mas na prática não precisam ser: pessoas que priorizam a economia e pessoas que priorizam o meio ambiente.
Observa-se na imagem um terceiro grupo, o que busca ser sustentável, e que os três grupos se sobrepõem, o que significa que existem opiniões que são compartilhadas entre esses grupos.
A EJ é um projeto de software livre que já foi utilizado em diversos contextos, um deles foi por meio da Comissão de Participação de Adolescentes (CPA), do então Ministério de Direitos Humanos até o ano de 2018. Adolescentes e crianças foram convidadas a participar e engajar-se por meio da ferramenta, para que pudessem interagir com uma tecnologia de forma positiva, participando de políticas públicas e contribuindo com elas.
Diante dos exemplos descritos, preocupações éticas e sociais são essenciais para o desenvolvimento da Engenharia de Software e da Computação e é possível realizá-la quando extrapolamos o lado unicamente técnico, trabalhando com o Sociotécnico [6], localidade, isto é, aprofundando questões locais do seu desenvolvimento, e transdisciplinaridade - envolvendo outras disciplinas, além da Matemática e a Computação. A tecnologia não existe em um ambiente isolado e deve dialogar com as pessoas que a usam e que por ela são impactadas.
É importante frisar que soluções em âmbito individual não são suficientes para a mudança em grande escala das metodologias e processos que já existem. Existem instituições que possuem o poder e os dados para fazer tais mudanças, por isso é discutido em nível global a responsabilidade das redes sociais pelas informações nelas veiculadas e como suas ferramentas internas enviesam assuntos.
Reivindicações para mudança de legislação e mobilização social também são importantes. Organização em grupos, conversar com seus próximos, conscientizar-se é o primeiro passo, mas não podemos parar por aí.
Espero que o artigo seja do seu interesse e que você tenha aprendido mais sobre Empurrando Juntas. Até logo!
Referências
- [1] Stackoverflow Survey 2022. Disponível em: https://survey.stackoverflow.co/2022
- [2] SCHLESINGER, Ari; EDWARDS, W. Keith; GRINTER, Rebecca E. Intersectional HCI: Engaging identity through gender, race, and class. In: Proceedings of the 2017 CHI conference on human factors in computing systems. 2017. p. 5412-5427.
- [3] SILVA, T.; BIRHANE, A. Comunidades, algoritmos e ativismos digitais: olhares afrodiaspóricos. [S.l.]: LiteraRua, 2020.
- [4] Pacheco pede regulação de redes sociais para combater violência em escolas. Acesso em: 20/06/2023. Disponível em: Agência Senado. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/04/18/pacheco-pede-regulacao-de-redes-sociais-para-combater-violencia-em-escolas.
- [5] THE WASHINGTON POST. Meta starts task force in fight against child pornography on Instagram. Acesso em: 20/06/2023. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/technology/2023/06/07/meta-instagram-child-porn/.
- [6] CUKIERMAN, Henrique Luiz; TEIXEIRA, Cássio; PRIKLADNICKI, Rafael. Um olhar sociotécnico sobre a engenharia de software. Revista de Informática Teórica e Aplicada, v. 14, n. 2, p. 199-219, 2007.
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