Lições aprendidas na Semana Mulheres de Produto
Se a pandemia trouxe algo de bom, em primeiro lugar foi a consolidação definitiva do trabalho remoto para muitas áreas do conhecimento, em especial a de tecnologia. Em segundo lugar, acredito que tenha sido a proliferação de eventos online, dos mais variados tipos e temas. Impossível acompanhar todos, mas alguns se destacam por aqueles pequenos detalhes que fazem total diferença: posso afirmar que esse foi o caso da “Semana Mulheres de Produto”, que aconteceu entre os dias 5 e 9 de abril.
Para quem não conhece, a "Mulheres de Produto” é uma ONG que tem por objetivo a disseminação de conteúdo gratuito sobre Gestão de Produto, Design/UX e Engenharia de Software. Criada em 2018, tem por lema “seja uma mulher que levanta outras mulheres”. Nada mais significativo em um ecossistema absolutamente (ainda) dominado por homens.
Mas, como veremos neste post, a força e resiliência dessas mulheres incríveis têm paulatinamente mudado para melhor esse cenário, e de uma forma surpreendentemente rápida - pelo menos para alguém como eu que, até cinco anos atrás, precisava procurar bastante para encontrar diversidade no meio.
Neste post, aproveito para compartilhar as lições aprendidas nas falas que tive o privilégio de acompanhar e interagir de alguma forma. Infelizmente não consegui cobrir todas as palestras, já que algumas aconteceram simultaneamente em salas diferentes, mas deixo aqui insights e principalmente referências de pesquisa para a comunidade nos keynotes da Iana Chan, da PrograMaria, e Carla Vieira, especialista em Inteligência Artificial (uma das palestras mais curtidas no evento, inclusive por mim). Outra palestra bem concorrida foi a da Livia Chanes, VP de Produto do Nubank.
#1º Dia de palestras
Quem abriu o palco principal do evento foi Iana Chan, com a palestra “Mais diversidade na tecnologia: construindo um futuro para elas”. A escolha dela para a abertura do evento não foi ao acaso, como veremos a seguir. Descendente de chineses, apaixonada por educação e tecnologia, e com perfil empreendedor na veia, Iana fundou um dos primeiros projetos de impacto social para mulheres, o PrograMaria, em 2015.
De lá para cá, foram inúmeros os desafios, e não apenas financeiros. Mas, com eles, também muitos insights importantes, como os que ela compartilhou em sua fala. O primeiro deles é como lidar com incertezas, com o não saber, e sobretudo com a tal “síndrome da impostora”: “isso é o que apita no nosso ouvido e que muitas vezes faz com que a gente não faça as coisas, mas sim desista antes mesmo de tentar”, define ela.
Sobre isso, a lição mais importante é: apenas comece. Simples assim. “Quando começamos, a gente não sabia direito o que ia ser, reunimos mais mulheres que queriam entender melhor sobre tecnologia, e juntas percebemos que havia uma questão estrutural e algo precisava ser feito para mudar isso”, conta Iana, que tem como foco em seu projeto impulsionar a carreria de mulheres cis e trans, e incentivar que essas pessoas também ocupem cada vez mais a área da tecnologia. Para se ter uma ideia da importância fundamental desse trabalho, até hoje as ações da PrograMaria já impactaram mais de 36 mil mulheres.
“O não saber é uma oportunidade, peça ajuda”
Outro insight interessante compartilhado por ela é a ideia de como lidamos com desafios, a partir da “teoria das mentalidades”, desenvolvida pela professora Carol Dweck, do departamento de Psicologia da Universidade Stanford. De acordo com ela, existem pessoas com dois tipos de mentalidade principais: as que possuem “mentalidade fixa”, para as quais inteligência e habilidades são inatas e estáticas - e, portanto, fixas no ser humano. Já as que possuem “mentalidade de crescimento” consideram ser absolutamente possível desenvolver essas duas características.
A consequência disso é que, para quem tem mentalidade fixa, o erro estabelece um indicativo da falta dessas características. O que representaria, dessa forma, uma fraqueza. Já para as pessoas com mentalidade de crescimento, o mais interessante é que o erro faz parte do aprendizado. Ou seja: o importante é sempre tentar e se esforçar. “E aí a gente chega nos desafios: a gente evita os desafios com medo de que eles revelem nossas fraquezas”, diz Iana. “A gente tende a pensar: ‘vou jogar no seguro, fazer o que eu tenho certeza que vou conseguir fazer, para eu não errar, e para ninguém perceber que eu tenho uma fraqueza”.
Mas o fato é que o desafio nada mais é que uma oportunidade de crescimento: “nunca fiz o que eu estou tentando fazer, então é óbvio que eu vou errar, é óbvio que eu vou ter dificuldades, mas é assim que a gente aprende coisas novas”, ensina ela, com base no aprendizado a partir da leitura do livro de Carol Dweck. Iana conta que entrar em contato com essa teoria foi um divisor de águas na sua trajetória como empreendedora, pois a ajudou a lidar com o não saber (tudo). Depois disso, ela passou a encarar suas experiências na nova jornada de trabalho com uma mentalidade de crescimento focada no “não sei ainda, mas vou tentar”.
Uma frase fundamental que ela disse é: “o não saber é uma oportunidade, peça ajuda”. E foi assim que ela foi aprendendo com outras comunidades de tecnologia. A verdade é que ninguém gosta de errar, mas o erro tem o seu valor: o de poder aprender e entender que o erro faz parte do processo de aprendizagem. Vale ressaltar que Iana só conseguiu ficar full time na PrograMaria a partir de 2018, em uma trajetória bastante difícil até “chegar lá”. Mas ela aprendeu a celebrar as pequenas vitórias do dia a dia no meio disso tudo.
O último insight que ela compartilhou, e que considero fundamental considerar aqui, é que o controle é uma (grande) ilusão. Ou seja: se preparar demais, nos mínimos detalhes, não é o caminho porque não vai te trazer o controle das coisas. É preciso aprender a lidar com os imprevistos também. E a grande chave para isso é reconhecer que a gente pode dar conta, sim, dos imprevistos que surgem pelo caminho (alguém pensou em obstáculos também?).
É claro que existe um equilíbrio entre o controle e o planejamento do que é possível e saudável fazer. Sobre isso, ela recomenda outro livro, “A coragem de ser imperfeito”, que aborda justamente como lidar melhor com as nossas vulnerabilidades, como conseguir abraçá-las e poder celebrar nossas trajetórias rumo ao sucesso na carreira, seja ela qual for. “Pense o que faz sentido para você, a sua vida, o que é sucesso para você?”
Para ela, é por exemplo a história da Ursula, uma jovem de Macapá que fez o curso da PrograMaria e conseguiu mudar de profissão e de vida, já que antes ela era manicure e não tinha um emprego formal. Para ela, o sucesso tem mais a ver com essas histórias. E deixa a lição: “juntes somos mais fortes”. Precisamos usar o que temos para construir o futuro que queremos. E esse caminho, invariavelmente, passa pela Educação.
#2º Dia de palestras
O segundo dia contou com o keynote de Carla Vieira no palco principal, com a palestra “Viés na Inteligência Artificial”. Como ela própria tratou de esclarecer logo de saída, o termo “viés”, para além de um atalho do nosso cérebro para a tomada de decisão, na verdade, não passa de um eufemismo sofisticado para a palavra preconceito mesmo. A “discriminação algorítmica” é o foco do Mestrado dela na USP, ou ainda, como as tecnologias de Inteligência Artificial podem ser (e são) usadas como ferramentas de opressão social.
Qual o papel da computação na criação de algoritmos mais justos? É possível definir matematicamente o que é justiça para que os algoritmos possam ser aplicados da forma mais apropriada no campo da Inteligência Artificial? Esses são apenas dois dos inúmeros questionamentos implicados no viés que compõe o complexo campo de estudo da Inteligência Artificial.
“A forma como cientistas da computação e pessoas da área da tecnologia são ensinadas sobre Inteligência Artificial e como elas são ensinadas a resolver problemas, muitas vezes não é a melhor abordagem para problemas sociais e não levam em consideração aspectos sociais, então fica uma visão super técnica que não considera todo o contexto em que aquela tecnologia está inserida” explica Carla.
“Isso faz com que a tecnologia seja vista de uma forma isolada da sociedade, sendo que isso não faz sentido - afinal, toda a tecnologia que você cria, vai impactar a vida de alguém de alguma forma. E, na escala que a gente vive, vai impactar a vida de milhões de pessoas”. Já vimos esse filme antes, certo? Aliás, literalmente, em documentários como o popular “Dilema das Redes”, exibido no Netflix pela primeira vez em 2020.
Inteligência Artificial é inteligente mesmo?
Por mais incrível que possa parecer, a Inteligência Artificial não é artificial, tampouco inteligente. Carla conta que, apesar de ser da área da computação, por vezes se questiona o quão inteligente - e, principalmente, confiável - ela pode ser ou mesmo se tornar. O problema é que, ao partirmos de uma falsa premissa de que a IA possa ser inteligente e confiável, estamos também ao mesmo tempo sugerindo que ela é também confiável para ser usada sem restrições em decisões de alto risco que envolvem questões relacionadas à saúde, educação e justiça criminal, por exemplo.
E cita a autora Kate Crawford, que escreveu o livro Atlas of AI, para ressaltar que, por mais que pareça (ao senso comum) de que a IA é algo criado pelo computador, ela também depende de recursos naturais, combustível, extração de minerais - que forma a base física da tecnologia - para poder existir. Até mesmo o processo de produção e montagem de hardware estritamente controlado, em países subdesenvolvidos, bem como trabalhadores que limpam depósito de lixo tóxico, também fazem parte da IA. Mas essa é, digamos, a “camada invisível” dessa tecnologia para a sociedade de uma maneira geral.
“Tudo isso tem um custo real: tem desde emissão de gás carbônico associada até custos físicos reais das pessoas, então não é algo tão artificial assim”, explica ela. E complementa que essa IA evidentemente também terá que rodar no servidor, um servidor que será construído de alguma maneira, envolvendo para isso custos de energia, água, enfim, muitos custos tangíveis e concretos, e que nada têm de artificial. E sobre não ser inteligente, é porque, de fato, a IA nem sempre toma as melhores decisões que podemos tomar ao ponderar muitas informações inter relacionadas, uma vez que está bem longe de ser totalmente autônoma para tomar as melhores decisões possíveis.
E é aí que entram algumas das grandes questões associadas ao objeto de estudo de Mestrado da Carla Vieira: para além das redes neurais, do reconhecimento de padrões, e de todos os termos técnicos envolvidos (que não são poucos), procurar entender como a tecnologia age e impacta a sociedade. Ou seja: o que está sendo otimizado, para quem e quem decide o que está sendo otimizado.
Como foram muitas referências interessantes e links de referência, abaixo você pode consultar os slides da palestra dela para se aprofundar um pouquinho mais nesse tema, que eu acho realmente fascinante sob vários aspectos. Essa foi uma das palestras que eu mais gostei no evento, e vale muito a pena acompanhar o que a Carla tem a dizer sobre o assunto.
Abaixo deixo o link para o PDF da palestra dela:
--> Para saber mais sobre o tema, acesse também um artigo especial que a Carla escreveu para o blog Revelo sobre o futuro da Inteligência Artificial
#3º e último dia de palestras
No último dia de evento, o keynote ficou por último, com uma palestra pra lá de aplaudida da Karen Santos, contando sobre sua história de vida, obstáculos e aprendizados à frente da EdTech “UX para Minas Pretas”. Mas, antes da fala dela, quem também foi muito apreciada, e talvez com recorde de audiência e engajamento no evento, foi a querida Livia Chanes, VP de Produto do Nubank, com a palestra “De PM para CPO: Escalando produtos e times como uma garota”.
Como pensar em escala e evoluir do papel de PM para CPO? Conseguir escalar o número de produtos em uma organização primando pela excelência requer algumas habilidades e alguns pontos de vista específicos, como ela bem fundamentou em sua palestra. Então qual seria o jeito “certo” de mirar o crescimento no número de clientes x times? A chave aqui, na visão dela, é refletir sobre como ampliar o raio de influência sem diminuir a qualidade e eficiência dos times que estão em uma fase de aprendizado anterior aos líderes.
Aumento da carteira de produtos x foco total no cliente
A maior dificuldade é conseguir preservar ativamente o foco no cliente em um cenário com considerável aumento no número de produtos. “É muito mais fácil você falar que é centrada no cliente, do que você de fato ser centrada no cliente, sobretudo em organizações de escala”, diz ela, numa clássica alusão à teoria x realidade das coisas.
E por que isso acontece? Não é tão difícil imaginar: à medida que os times vão crescendo e se especializando nas jornadas de produtos, acaba sendo quase natural fragmentar a forma como os PMs vêem cada etapa da jornada do cliente. Então, se como líder você não souber implantar uma cultura forte com princípios bem definidos e garantir que esteja trazendo essa coesão para o time como um todo, as coisas acabam se perdendo.
A imagem abaixo ilustra bem o que ela quer dizer com isso:
E qual a dificuldade maior em tudo isso? Quando é preciso fragmentar os times para cuidar de jornadas e necessidades específicas, à medida que o negócio ganha escala e complexidade, o que você pode facilmente perder é a visão do todo. E o problema aí não é apenas uma questão de consistência, mas sim de perder a oportunidade de enxergar a inovação nas fronteiras. “Muitas das inovações acontecem nas fronteiras das jornadas, e não somente em como elas já são desenhadas, porque é nas fronteiras que você consegue fazer a desconstrução do que já existe para reconstruir uma coisa muito mais centrada no cliente”, comenta ela, a partir da própria experiência no Nubank.
Isso porque as fronteiras são riquíssimas na forma como a gente pode pensar em entrar e se apropriar das necessidades que estão escondidas nas conversas com os clientes e que ainda não foram entregues, com os produtos existentes em uma organização, como é o caso do Nubank.
E como pensar em crescer e ganhar clientes de uma forma saudável? Para ela, a palavra-chave é eficiência, que chega a ser uma questão de sobrevivência: afinal, você pode construir o melhor produto do mundo, que a competição certamente vai correr atrás. E só tem uma coisa que vai poder te proteger e garantir que você consiga correr mais rápido que a concorrência: são justamente seus unit economics. E como crescer de uma forma eficiente e também acelerada, mas sem precisar ficar otimizando tudo nos mínimos detalhes?
Um dos caminhos possíveis para isso é investir em (automação de) plataformas. É pensar nos produtos desde o começo: ao refletir sobre os trade-offs e também explicitamente sobre o que é construir um produto que seja escalável versus o que é um produto que possa levar mais rápido para a próxima interação, é possível obter plataformas que são muito mais elásticas e robustas para crescer.
E como ser uma líder de produto mais eficaz?
O nome do jogo aqui, para conseguir escalar os times e manter o nível de excelência e de engajamento, é buscar encontrar o melhor equilíbrio de autonomia entre os times de produto. “Autonomia é importante para o processo de inovação, para a gente garantir que as pessoas estejam engajadas, focadas e que as melhores ideias sejam valorizadas. Para quem quer ser um líder de produto, navegar com proficiência a gestão da autonomia talvez seja a habilidade mais importante”, afirma Lívia.
E ela diz isso porque a autonomia também pode ser mal interpretada: porque não se trata de simplesmente se fazer o que quiser, ou ainda o que “der na cabeça”. A definição de autonomia para ela percorre outro caminho, que é influenciar de forma efetiva a direção do trabalho que está sendo realizado pela equipe. E existem formas de se fazer isso.
Por exemplo: para que haja uma autonomia alta em um time, é preciso que haja um alinhamento alto também. Quando a coisa toda fica muito solta, ou seja, a autonomia é assegurada mas permite que os times simplesmente façam o que eles quiserem, sem esse alinhamento, das duas, uma: com o tempo, ou vira uma bagunça, ou as pessoas ficam altamente desmotivadas. Mas vale lembrar também outro ponto fundamental: de nada adianta fazer o alinhamento da solução mas não deixar os times terem autonomia para proporem e executarem suas ideias.
Da mesma forma, um alinhamento alto com uma autonomia baixa também é ruim. Você não consegue ter pessoas brilhantes trabalhando com você só para cumprir ordens. E aqui vai uma frase incrível que ela disse: ninguém que é excepcional gosta de trabalhar sem poder influenciar o resultado do que está fazendo. Isso, para mim, não poderia ser mais verdadeiro!
Então o x dessa questão é saber como conduzir os princípios sobre os quais os times devem trabalhar: qual seja, dar a liberdade para que o time possa trazer as melhores ideias em profundidade e poder debater isso em conjunto com os líderes.
E, sobre isso, ela compartilha 3 princípios:
1) Visão além do alcance, que basicamente estabelece a capacidade do líder em mostrar claramente qual é o problema, e quais são os limites de solução que estão na mão do time para que eles possam trabalhar.
2) Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, e aqui ela usa uma palavra em inglês ótima para definir isso: accountability. Ou seja: não existe autonomia sem responsabilidade pelo que se faz. Em resumo, se você quer ter autonomia, precisa também ser responsável pelos resultados do que estiver executando na sua equipe. Essa accountability também precisa vir acompanhada de dois preceitos básicos: transparência e compromissos claros para as coisas mais importantes.
3) Não há evolução sem saber escolher as batalhas certas, o que basicamente quer dizer que seus times não vão crescer sem cometer erros, sem batalhar e sem conseguir construir suas próprias cicatrizes. Evidentemente, você será o líder que vai dar todo o apoio e suporte em cada “cair e levantar” nesse campo de batalha.
Conclusão
A segunda frase incrível que ela disse, deixou para a conclusão da palestra: só dando o espaço certo para as pessoas crescerem ao mesmo tempo que valoriza essas pessoas é que um líder será capaz de conseguir construir times fortes. “Ninguém consegue ser um líder de produto de sucesso fazendo produtos incríveis sozinho. Se você não consegue atrair pessoas que sejam brilhantes para trabalhar com você e tornar essas pessoas ainda mais brilhantes e preparadas, é impossível você ter sucesso”.
E claro, essa premissa também tem tudo a ver com estímulo à diversidade nos times, que possuem visões de mundo diversas, e consequentemente com formas diferentes de resolver os mesmos problemas. Nos slides ela deixa uma referência de como a diversidade impacta positivamente na performance (de qualquer) time. Organizações dos mais variados segmentos só têm a ganhar com isso, não apenas em inovação, mas principalmente em capital humano.
Abaixo deixo o link para o PDF da palestra dela:
EDIT: Quer ver todas as palestras que rolaram no evento? Quando escrevi este artigo, elas ainda não estavam disponíveis. Agora, você pode acessar a trilha completa no canal das Mulheres de Produto no YouTube.